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o segundo antes do fim

eu passo por aquele caminho e ele continua bonito. faça chuva ou faça sol céu cinza ou céu azul. eu olho todas aquelas árvores e não sinto remorso algum delas. fosse em outro tempo talvez eu desejasse que elas fossem todas queimadas e sumissem dali para todo o sempre. mas não. elas embelezam a paisagem deste que era um dos meus caminhos favoritos. eu não te conheço mas acredito que também era o seu.

no natal eu chorei pelos seus, embora eu nunca tenha conhecido eles. e nem você. e no ano novo eu senti uma agonia imensa ensurdecedora aguda mesmo, bem aqui. e só consegui pensar que não te conheço mas conheço sua agonia. e por conhecer sua agonia talvez eu pudesse te conhecer. mas a agonia, quando não é transformada em poesia ou coisa que o valha, só contempla essa parte feia e suja que a gente – e os outros – quer(em) fugir.

eu não te conheço mas tenho certeza que você não gostaria disso tudo que estamos vivendo. sorte a sua, inclusive. pena que você tem perdido a parte boa também. mas a gente aceita e perdoa e conforma-se, enfim – um dia, quem sabe.

eu não te conheço, e no entanto tenho conhecido diversas pessoas e lugares por você. e embora eu não te conheça, gosto de imaginar do que você gostaria quando conheço lugares e pessoas e sentimentos. porque nem só de agonia se vive ou se sofre.

eu não te conheço mas imagino que você gostaria de ler anna kariênina. chego quase a ter certeza absoluta que você gostaria. eu não te conheço, mas fernando pessoa me lembra você. alberto caeiro, para ser mais específica. quando vier a primavera, o que for, quando for, é que será o que é. eu não te conheço, mas acho que você entenderia.

eu escrevendo todas essas bobagens chorei as lágrimas que você não pode chorar. eu não te conheço, mas acho que você choraria também.

e eu escrevendo todas essas bobagens só queria saber o que você sentiu no segundo antes do fim da agonia.

mas não quero sentir. e é por isso que, embora eu não te conheça mas conheça a sua agonia, eu continuo me esforçando para conhecer outros lados da vida que não só esse onde o sol não bate.

hoje eu sei que aquele caminho repleto de árvores continua sendo o meu favorito.

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Se organizar direito, todo mundo chora no fim do mundo

Hoje, sexta-feira 13, saiu o novo álbum da Letrux: Letrux aos prantos.

Conheci o trabalho da Letrux há uns dois anos e desde então sou apaixonada. E esse álbum novo veio num momento em que eu estou pensando exaustivamente em diversas coisas que não têm resposta. Veio num momento em que estou pensando exaustivamente em coisas que me angustiam, mas que não posso lidar da forma mais óbvia possível, pois ando muito, muito ocupada.

Tenho pensado muito em como meu tempo é preenchido, tenho refletido sobre essa exaustão que acompanha toda gente e em como é difícil nutrir as nossas subjetividades e os nossos sonhos. Isso se deve também à leitura do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, do Ailton Krenak. “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Não me lembro a autoria dessa frase, mas concordo. Esse título se relaciona bem com o pânico geral em que estamos vivendo por conta da última pandemia. A gente se preocupa em morrer com um vírus (não desmerecendo a preocupação, é claro), mas esquece que morremos todo dia um pouquinho, que vivemos o fim do mundo todo dia: meio ambiente à míngua, desigualdade social, condições precárias de trabalho, ressurgimento de uma onda fascista, ódio a todo o vapor, o massacre cotidiano da humanidade pelo capitalismo, etc etc etc. Me abalo e me abalo muito. Todo dia uma pitadinha de pulsão de morte em quase todo e qualquer canto do mundo. E todos os anos da sua vida você passa pelo dia da sua morte sem saber.

E aí que às vezes eu me sinto sufocada. Saí de casa perdi o metrô esqueci a chave e começou a chover. Verdadeiramente sufocada, tateando em busca de algum sentido que me lembre o que é ser humana, e não meramente humana-máquina, que por vezes se vê somente anestesiada com as mazelas do mundo e ocupada demais para lidar com questões pessoais. E aí que eu sinto falta de poder parar um pouco, sentir as coisas, digerir as coisas, ter um tempo marcado pelo vazio despretensioso. Porque até a noção de descanso anda sendo esvaziada: a gente descansa só com o intuito de se recuperar para ser produtivo por mais um dia.

Hoje, sexta-feira 13, não tive aula nem estágio. E como estou me recuperando de uma crise de sinusite, decidi que repousaria, então cancelei a aula que daria hoje. E por alguns minutos não soube o que fazer com essa quebra de rotina. E foi me dando uma ansiedade. Aí eu ouvi o novo álbum da Letrux. Na primeira vez que ouvi, estava lavando o quintal, ouvindo com meu fone quebrado, tentando entender as letras enquanto esfregava o chão e tentando não me distrair com o barulho da máquina de lavar. Gostei de algumas músicas, e foi isso. Há umas duas horas decidi parar para ouvir todo o álbum. E foi tão tão diferente poder prestar atenção na música. Sentir a música. Pude até lembrar que chorar é som. Que chorar é bom. E que pra mim não há sentido nenhum em continuar viva se não for pra me encantar com as coisas. Se não for para sentir, para me emocionar – e porque a vida precisa ser mais que produtividade, mais que pagar contas e enriquecer alguém, mais que aparências, mais que viver num invólucro que me impede de tocar o sensível e o dolorido e o que há de humano em mim e resiste apesar das intempéries. Viver é um frenesi.

E, por essa e tantas, felizmente eu estou aos prantos. Quem não?

Obs.: todas as frases em itálico são de trechos de músicas do novo álbum da Letrux.

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A música em Pessoa – e os ecos de Pessoa em mim

Dia desses me deparei com uma lembrança do Facebook: um poema de um dos heterônimos de Fernando Pessoa: Segue o seu destino, na voz poética de Ricardo Reis. O compartilhamento era de meados de 2013 ou 2014, já não me recordo mais. Sei que sorri ao ver essa lembrança de rede social, pois hoje em dia, em 2020, esse poema é para mim como um mantra, uma reza, uma oração a que recorro quando as coisas parecem escapar pelos meus dedos. E aparentemente ele já tinha me cativado há muito tempo, quando eu sequer sabia um terço da grandiosidade do Pessoa.

Hoje, aos 22 anos, como estudante de Letras e como uma apaixonada confessa pelo autor de Mensagem, é bastante simbólico saber que a Ana anterior já sentia uma identificação com as suas palavras. Eu jamais imaginaria que anos depois estaria estudando Pessoa e fazendo isso com tanta ternura.

É que me encanta a forma que Pessoa (auto)psicografou os sentimentos humanos. A forma que ele se tornou múltiplos. É que me encanta a forma como esses múltiplos convergem, apesar das diferenças, e eu me vejo encantada com as vozes poéticas de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Pessoa, enfim – todo ele, todos eles.

O simbolismo nacional e a complexidade em compreender essa persona literária de Pessoa, que justamente por ser múltiplo, pode ser lido de diversas formas, me agrada demais. A travessia de sua leitura não é necessariamente fácil, mas de fato é encantadora – foi para a Ana adolescente e com uma bagagem literária miúda e modesta, é para a Ana semiadulta estudante de Literatura, com um tico mais de entendimento que outrora.

Segue seu destino é um dos meus poemas favoritos da vida inteirinha. E uma das melhores coisas que descobri do ano passado para cá é que existe esse poema musicalizado na voz da Nana Caymmi (e da Maria Bethania e de outras pessoas também). Na realidade, existe todo um álbum de poemas musicalizados do Fernando Pessoa. Se chama A música em pessoa (1985) – trocadilho um tanto óbvio, mas não menos incrível que a obra poética do autor de Mensagem.

O poema, que é para mim como um mantra, uma reza e uma oração, se torna mesmo ainda mais potente quando transformado em música. É sempre um lembrete sobre a brevidade, sobre a solitude, sobre a suavidade, sobre as buscas incessantes. Às vezes eu esqueço de me lembrar disso que parece tão simples – e é.

E enquanto a minha memória falhar em lembrar dessas simplicidades necessárias no cotidiano, eu conto com esses registros sobre o carinho que nutro pelas palavras de Pessoa (palavras essas que ecoam na minha vida desde que me deparei com elas) para que eu não me esqueça jamais: seguir o meu destino, amar as minhas plantas, regar as minhas rosas; pois o resto é sombra de árvores alheias.

 

 

 

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O peso da leveza de um riso

Coisa que mais gosto é rir. Rir e principalmente fazer rir. Quando ouço uma risada genuína, escandalosa e incontida, meu peito chega a se encher de algo que não sei se é paz ou puro orgulho de ter sido suficientemente engraçada a ponto de causar uma risada genuína, escandalosa e incontida. Acredito no poder do riso. Tenho amigos que nunca me foram úteis nos momentos difíceis propriamente ditos, com palavras amenas e abraços acolhedores, mas que me já me fizeram rir em dias difíceis a ponto d’eu esquecer um tico a dor, o peso e o gosto amargo na boca que só dias difíceis proporcionam.

O riso é anestesiante. É embriagador. Mas insuficiente, tenho pensado. Ainda importante, ainda altamente maravilhoso, mas insuficiente. Não sei se insuficiente seria a palavra certa a ser empregada, pois nada parece ser suficientemente suficiente, afinal. Mas é isso: a leveza de um riso em meio ao caos traz em si também um peso. Essa dificuldade de lidar com o que foge ao controle, essa ânsia por dizer, a necessidade de um acalanto, essa ausência dolorida, o grito de socorro preso na garganta. O riso abafa isso tudo, por vezes. Bom ou ruim?, me questiono sempre – enquanto penso em alguma outra coisa engraçada para dizer.

É com o riso que tenho lidado com algumas coisas difíceis. É com o riso que tenho cativado algumas das pessoas que mais gosto. É com o riso que mantenho na minha vida as pessoas que mais gosto. O riso permeia toda a minha vida e atravessa os círculos sociais que eu escolhi. É com o riso que sigo os meus dias, porque rir traz leveza.  (Mas até que ponto é possível amenizar somente com o poder do riso os incômodos agudos da alma e da própria realidade pungente? Até que ponto as relações são passíveis de serem mantidas com o elo do riso sendo mais forte que o elo da empatia e da compreensão e da escuta e de um simples ei-eu-estou-aqui-por-você-segura-minha-mão?) É com o riso que sigo os meus dias, porque rir traz leveza. Mas certamente rir e fazer rir não apagam nem curam sequer amenizam de fato as durezas e friezas com as quais temos que lidar no íntimo ou na realidade concreta, mesmo.

Esquecer momentaneamente e um tico a dor, o peso e o amargo na boca que só os dias difíceis proporcionam não é o suficiente quando se pode abraçar um abraço acolhedor e dizer palavras amenas. Esquecer momentaneamente e um tico a dor, o peso e o amargo na boca que só os dias difíceis proporcionam não é o suficiente quando se pode ser e estar presente. Mas isso é difícil. Tão difícil quanto lutar contra um dia difícil com as próprias forças. Exige um despudor e uma nudez das nossas maiores fragilidades; um retirar de cascas e cacos, um amontoar-se sobre os escombros, um eterno cavucar-se, tocar buracos vazios e feridas. É difícil. É um fato. E apesar de trágico, eu não condeno de todo (quem sou eu para isso?).

Então mantenho o riso frouxo e solto. Afinal, coisa que mais gosto é rir – rir e principalmente fazer rir. Porque se não posso curar suas dores, limpar suas feridas, ler as suas ausências, saber o que te angustia, que eu possa pelo menos provocar uma risada genuína, escandalosa e incontida. Uma risada que se equilibre na leveza e no peso que ela mesma carrega sobre uma tênue corda bamba. Acredito no poder do riso: nesse poder efêmero de leveza, nesse poder efêmero de disfarce.

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O bom filho à casa torna

Foram muitos anos longe daqui. A vida acontecendo e os meus textinhos adolescentes aqui, parados. Como é engraçado voltar e lê-los. Sou completamente outra e ainda a mesma, porque algumas coisas nunca mudam. Como é engraçado voltar e perceber que apesar das inevitáveis mudanças do tempo, eu ainda sou essa mesma Ana que gosta de perceber as sutilezas da vida. Apesar do afastamento, ainda sou essa mesma Ana que gosta de escrever e de se encantar com o fazer literário, com os ecos e as ressonâncias que só a arte consegue atravessar diante da dureza da vida e da correria cotidiana. Sou a mesma e sou muitas – e é muito bom e engraçado perceber isso.

E resolvi aparecer aqui por pura curiosidade. Eu sequer sabia se lembrava a senha. Tentei uma, duas e voilà, consegui. Apareci como quem não tem nada para fazer e vai olhar os álbuns antigos de fotografia – a diferença é que eu tenho muito a fazer. Apareci porque sinto falta de escrever de forma sequenciada, corrida, sem a diluição que as outras redes (como o twitter) proporcionam e sem as múltiplas brechas interpretativas que uma postagem com limite de caracteres propicia. Apareci porque sinto falta de escrever, mas ser lida apenas por quem de fato está a fim de ler o que escrevo. Não me entenda mal: eu adoro as outras redes sociais. Mas cada vez mais me sinto podada – e ninguém precisou fazer isso, é algo que sinto aqui dentro e a vontade de externalizar por outros meios se faz necessária. Afinal, apesar do afastamento, eu nunca deixei de escrever. Só escrevi em outros lugares, sobre outras coisas, em outras formas. E eu apareci, enfim, porque sinto falta de escrever outras histórias que não as minhas. Dar outros nomes às vivências e aos sentimentos, mistificar um pouco mais isso a que chamamos vida (afinal, “a vida só é tolerável pelo grau de mistificação que se coloca nela”). E escrever pelo puro prazer de escrever, mesmo que seja tosco, mal feito, e até mesmo sobre outras coisas que não as profundas-e-intensas, porque é algo que eu gosto, sempre gostei e parei pela infeliz urgência do imediato – que depois se provou não-tão-imediato assim, afinal.

Escrever sobre escrever não era bem a minha intenção nesta minha volta. Mas foi o que surgiu quando me deparei com essa página em branco. Queria prometer a mim mesma uma periodicidade nas postagens, mas acho que a vida por si só já é tão cheia de afazeres que não quero tornar a escrita aqui mais uma tarefa a ser cumprida. Quero escrever com naturalidade. E escrevo hoje, por exemplo, porque me encontro gripada e de saco cheio de rolar a timeline das outras redes. Não que aqui seja muito diferente, risos. Mas é bom parar um pouco para escrever essas bobagens, sabendo que eu tive pelo menos o mínimo trabalho de ordenar os pensamentos para enfim materializá-los em palavras.

É bom estar de volta à casa.