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Canção – Por Cecília Meireles

“Assim moro em meu sonho:
como um peixe no mar.
O que sou é o que vejo.
Vejo e sou meu olhar.

Água é o meu próprio corpo,
simplesmente mais denso.
E meu corpo é minha alma,
e o que sinto é o que penso.

Assim vou no meu sonho.
Se outra fui, se perdeu.
É o mundo que me envolve?
Ou sou contorno seu?

Não é noite nem dia,
não é morte nem vida:
é viagem noutro mapa,
sem volta nem partida.

Ó céu da liberdade,
por onde o coração
já nem sofre, sabendo
que bateu sempre em vão.”

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Retrato – Por Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?

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Mulher ao Espelho – Por Cecília Meireles

“Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seu
se morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.”

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“que minha loucura não seja aval para
ofender nem minimizar ninguém
que minha liberdade não me dê o direito
de maltratar, mesmo que eu discorde do outro
que meu orgulho não se transforme
em arrogância ou prepotência
que eu tenha compreensão com quem me ignora
que eu tenha compaixão com os donos
da verdade, fracos de espírito
que eu continue doce, mesmo que a vida
insista em ser amarga
me dê sabedoria para distinguir interesse
de bondade
livrai-me de toda maldade travestida
de desejo
amém”

Por: grazi 

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Soneto VIII – Mário Quintana

“Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!”

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Meu Vintém Perdido – Cora Coralina

“Que procura você, Aninha?

Que força a fez despedaçar correntes de afeto

e trazê-la de volta às pedras lapidares do passado?

Sozinha, sem medo, vinte e sete anos já passados…

Meu vintém perdido, meu vintém de felicidade.

Capacidade maior de ser eu mesma, minha afirmação constante.

Caminheira, caminhando sempre.

Nos meus pés pequenos,

meus chinelinhos furados.

Tão escura a noite da minha vida…

Indiferentes ou vigilantes.

Tanto tropeço.

Na frente, marcando o caminho a candeia apagada.

Procuro minha escola primária e a sombra da velha mestra,

com seu imenso saber, infinita sabedoria, sua arte de ensinar.

(…)

Quando eu morrer, não morrerei de tudo.

Estarei sempre nas páginas deste livro, criação mais viva

da minha vida interior em parto solitário.”

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Aninha e suas pedras – Por Cora Coralina

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.